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Agente fala sobre horário especial de servidor estudante

Há 5 anos


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Ao encaminhar seu Trabalho de Conclusão de Curso no departamento de Direito da Ufes ao Sinpef-ES, o policial federal Ricardo Abidala Keide escreveu uma carta em que relata à entidade representativa sobre sua experiência e os desafios dos agentes federais que são estudantes. O tema de seu TCC foi “Horário Especial de Servidor Estudante: Uma Abordagem a Partir Da Lei 8112/90 e da Constituição Federal”. Confira.

PÓS-ESCRITO: CARTA AO SINDICATO

Acrescento estas linhas ao término deste trabalho para conferir a mim mesmo um pouco mais de liberdade para além das amarras acadêmicas e poder dirigir-me diretamente aos meus. Àqueles que ombreiam comigo há quase 20 anos combatendo o crime, alguns pagando com a vida por essa missão, e, ao mesmo tempo, experimentando o bom e o ruim do serviço público no Brasil.

Nossa casa, a Polícia Federal, lugar onde o próprio Senhor Deus me preparou uma missão, é uma casa de excelência no que diz respeito ao material humano. Conheci homens e mulheres dedicados, que lutam dignamente.

Quem é o servidor da Polícia Federal estudante? É um homem ou mulher de meia idade que, necessariamente, está fazendo um segundo curso superior, uma vez que, para o ingresso no órgão, é necessário um diploma. Muitas vezes é um pai ou mãe que, além dos compromissos acadêmicos, deverá trabalhar, no mínimo, 40 horas por semana, que pode ser acionado a qualquer tempo, mesmo nas folgas, e que verá o sol nascer depois de uma noite de trabalho, muito mais do que outros trabalhadores. Alguém que, muitas vezes, escolhe uma área acadêmica relacionada ao seu trabalho, para fazer melhor aquilo que já faz, sem existir nenhum tipo de incentivo do Estado que o patrocina.

Como costuma agir, o servidor da Polícia Federal, para estudar? Alguns buscam proteger seu tempo de estudo, garantia fundamental, pelo gozo do direito estudado nesse trabalho. Outros não. Embora eu não esteja certo dos números, suponho que a maioria não. Estes buscam entendimentos com suas chefias, buscam setores ou atividades potencialmente menos prejudiciais ao propósito acadêmico ou simplesmente “pagam pra ver” se conseguem. Muitas vezes não conseguem. Quando isso acontece, justificam que, no fim das contas, é a Polícia que paga seus salários, que estavam mesmo cansados, que vão economizar dinheiro e tempo parando de estudar.

No meu caso, levei sete anos para concluir o curso de Direito. Venci quatorze processos administrativos de requerimento de horário especial de servidor estudante dirigidos a diversos gestores e um processo judicial (Mandado de Segurança), no qual esse Sindicato me apoiou e ofereceu assessoria jurídica.

Nesse trajeto, conheci os problemas mais frequentes opostos pela Administração Pública ao direito do servidor. Gostaria de partilhá-los, aqui com mais liberdade, para que pudéssemos aprender com eles:

Quanto à natureza do ato administrativo, em cada um dos quatorze processos administrativos meus superiores hierárquicos foram questionados pelo dirigente sobre a existência de prejuízo ao serviço, como se, havendo prejuízo, a concessão deveria ser negada. Isso é uma postura claramente ligada a uma discricionarização do ato administrativo vinculado. Tratamos disso nesse trabalho, quando falamos sobre a diferença entre prejuízo ao serviço e prejuízo ao exercício do cargo, este último, termo da lei.

No mesmo tema da natureza jurídica do ato, em um dos processos administrativos, meus superiores se manifestaram sobre a minha conduta como servidor, se eu era dedicado, assíduo, se contribuía significativamente para o serviço, como se, não sendo, pudesse haver um julgamento subjetivo capaz de negar a concessão. Leve-se em conta que esses dois itens foram observados com escândalo nos processos, mas precisaram ser tolerados em silêncio, na confiança de um bom resultado que, ao fim, é o que se busca.

Quanto ao venire contra factum proprium, o mais nocivo dos vícios, pode ser grave ou leve. Decisões contrariando decisões anteriores acontecem, logicamente, após o deferimento da concessão. Na forma leve é expressamente admitido pela Divisão de Legislação e Pareceres quando entende que a própria instituição de ensino tem previsão de tolerância de falas, sendo assim, escalar o policial com horário especial para missões, viagens curtas ou cursos de capacitação fora da sede não ofenderia o direito. Na forma grave, muitas vezes precisa ser combatida pelo controle judiciário dos atos administrativos: são longas viagens de serviços, escalas de sobreaviso ou até remoções (nesse caso, mais frequentes em outras instituições como as Polícias Militares).

Quanto à comprovação da incompatibilidade de horários de estudo e de trabalho, que é requisito para concessão, algumas vezes se enfrenta o problema de dirigentes que entendem, por exemplo, que um curso noturno não é incompatível com o horário de trabalho, que pode ser desempenhado durante o dia. Defendemos, contudo, que qualquer horário acadêmico é incompatível com o regime de dedicação exclusiva, que autoriza que o servidor possa ser acionado a qualquer momento. Justamente por isso, o horário de estudo, qualquer que seja, deve ser protegido a fim de que não seja perturbado.

Essas hipóteses não esgotam o problema enfrentado, mas são as mais frequentes.

Tive medo ao judicializar a violação do meu direito durante a Copa do Mundo de 2014, na qual fui escalado para passar 90 dias letivos trabalhando em Salvador/BA. Ajuizei a ação com medo. Com ela aprendi que todo receio é infundado e é justamente nele que se apoiam o autoritarismo e a má fé da administração que, na prática, confia na hipossuficiência do servidor público, esse diabo, que nos fazer crer que não existe. Nada se pessoaliza numa ação judicial: não é o servidor A face ao administrador B. É o direito contra o injusto. Por isso, o mais inflexível gestor se torna um menino diante de uma ordem judicial nas mãos de um oficial de justiça que entra em seu gabinete. No Estado Democrático de Direito não há poder que se encerre em si mesmo e o judiciário está aí para cumprir seu papel de controlar os atos administrativos. Dois meses depois, o gestor estará seduzido pelas aspirações políticas de sua carreira e o servidor estará completamente esquecido, seguindo seus estudos.

Não é exagerado lembrar que outros institutos jurídicos podem socorrer o servidor em casos extremos: assédio moral, improbidade administrativa e conversão de prejuízos em perdas e danos. Cada um desses temas poderia gerar uma monografia independente, no que diz respeito a sua aplicabilidade referente ao horário especial de servidor estudante. É certo que a não concreção dos direitos fundamentais pelo Estado-Administração, à vista da sua possibilidade jurídica, “implica mora da Administração Pública, passível de correção judicial a determinar a tutela satisfativa ou a conversão em perdas e danos” (DEZAN, 2018, p. 87).

O processo administrativo também não deve ser temido. Um velho amigo dizia que “responder” a um processo não tem problema nenhum, problema é quando você não tem “resposta”. Isso significa que, em nossa visão, diante de uma eminente violação ao direito, por exemplo, num venire contra factum proprium, o servidor deve informar por escrito e fundamentadamente a sua recusa em cumprir a ordem. Diga-se, ordem manifestamente ilegal, já que o administrador está impossibilitado de agir contra o horário especial já concedido. Deve, com a recusa por escrito, tentar impedir prejuízos à administração (como aconteceria no caso de aquisição de passagens aéreas nominais), contemplando a boa-fé objetiva. Recusada a ordem, deve suportar o ônus de um processo administrativo disciplinar com apoio do sindicato, uma vez que o mais gravoso dos resultados não será tão grave quando o prejuízo sofrido ao direito fundamental, que não poderá ser reclamado à posteriori. Isso sem considerar a ampla margem de sucesso na defesa do mérito administrativo.

Portanto, agradeço à FENAPEF e ao SINPEF/ES por acreditarem e conhecerem a hipossuficiência do servidor público face ao Estado Administração, conceito este, visto com tantas reservas na doutrina do Direito. Agradeço também por me fazerem reconhecer a mim mesmo no melhor slogan que já existiu em nossa casa: A POLÍCIA FEDERAL SOMOS NÓS.

RICARDO ABIDALA KEIDE, policial federal